sábado, 19 de junho de 2010

A LUCIDEZ QUE INCOMODAVA?





Não sou um ateu total,
 todos os dias tento encontrar um sinal de Deus,
mas infelizmente não o encontro.
José Saramago








 
     Faleceu ontem em Lanzarote (a ilha mais oriental do arquipélogo das Canárias) aos 87 anos de idade o escritor português José de Sousa Saramago (1922-2010). Saramago foi laureado com o Nobel de Literatura de 1998 e o Prêmio Camões (mais importante prêmio literário da língua portuguesa). Um dos seus livros "Ensaio sobre a Cequeira" virou filme e foi dirigido maestralmente pelo cineasta brasileiro Fernando Meirelles. Quem ainda não conhece esse escritor e seus escritos tem a oportunidade de fazê-lo, pois dificilmente não haverá uma biblioteca pública em países de língua portuguesa que não tenha algum dentre seus vários livros e, também, há inúmeros sites com sua biografia e cometários sobre sua obra. Me atenho em fazer essa humilde e que se quer justa homenagem ao escritor sem ficar "chovendo no molhado" acerca de sua biografia e obra.
     Por conta das ideias contidas em seus livros, foram e, arrisco uma previsão, serão por muito tempo polêmicas e rechaçadas com a mesma ou maior veemência, com a "radicalidade" que os críticos atribuem ao próprio Saramago. Não raro as críticas mais impiedosas são lançadas por alguns intelectuais cristãos e pela ala mais ortodoxa da Igreja Católica. Curioso que sempre o considerei _ apesar do ateísmo declarado e a negação da metafísica (Saramago era marxista) _ um genuíno "cristão" quanto aos valores que impregnam sua obra e as reflexões frequentes e honestas sobre a religião e a religiosidade, sobre o Bem e o Mal. Saramago nesses quesitos, diria filosófico, fez mais pela dimensão subjetiva, interior do ser humano do que muitos ditos religiosos. Ao questionar o "inquestionável", ao ajudar a mover as "pas dos moinhos" das possibilidades do real e da fantasia elevou a fé (e a descrença) a um patamar de discussão que os verdadeiros extremistas e dogmáticos jamais colocariam em pauta.
     Penso que a fé, também, se sustenta pela busca da verdade por mais dura e incômoda que seja, e pelo exercício livre da imaginação, mas não foi essa a mesma compreensão do Jornal do Vaticano "L'Osservatore Romano" que em artigo, cujo título traduzido é "O grande (suposto) poder do narrador", declarou ser o escritor "um ideólogo antirreligioso, um homem e um intelectual que não admitia metafísica alguma, aprisionado até o fim em sua confiança profunda no materialismo histórico, o marxismo". E, ainda, o considera como "um populista extremista" que "colocou-se com lucidez ao lado das ervas daninhas no trigal do Evangelho".
    Essa é uma reação datada, pois tem início com a publicação em 1992 do "Evangelho segundo Jesus Cristo", no qual "O Salvador" teria perdido a virgindade com Maria Madalena e, acentuada ainda mais a fúria dos "defensores" dos dogmas cristãos e da Igreja, em 2009 com o livro "Caim" em que essa personagem bíblica (a personificação do Mal no universo cristão) é descrito como um Homem nem pior nem melhor do que ninguém. Como diria Nietzsche "humano, demasiado humano". Nessa obra Deus aparece como dotado de sentimentos, a semelhança da criatura, nem sempre louváveis.
    Outra coisa curiosa é que Saramago bebe _ entre outras _ nas fontes de Platão e Aristóteles. Sua referência a "alegoria da caverna" do Platão no "Ensaio sobre a Cequeira" é explícita e declarada. O interessante está no fato de que esses Filósofos gregos da antiguidade foram e são usados até hoje para sustentar concepções no escopo do cristianismo e, exceção à lógica aristotélica, a filosofia platônica não é bem quista pelo marxismo ordoxo que _ modo de dizer _ prefere outra dialética.
  Aos admiradores da obra de Saramago, resta esperar que  no decorrer da história continuem a reservar espaço para esse grande cultivador de histórias e semeador de ideias no solo das raras "ágoras" comtemporâneas. Assim como o disse Saramago "não tenhamos pressa, mas não percamos tempo".